Afinal vale a pena
Desculpem-me o tom menos contente com que escrevo mas hoje não acordei bem disposto. No entanto esta história é uma que vale a pena ser contada. É uma história simples e que à primeira vista não tem nada de novo nem digno de se realçar.
Não fora o facto de eu estar ao lado para a presenciar, para a acompanhar de perto e provavelmente teria passado despercebida. Não me passou despercebida e ainda bem porque me abriu os olhos e me fez ver que afinal vale a pena.
Estou farto de rodeios e como hoje não estou nos meus dias, cá vai a história de chofre, sem grandes rodeios.
Tinha eu acabado de pedir a minha bica ao balcão num café do Colombo quando ao meu lado apareceu um jovem. Até aqui nada de novo e de estranho... continuava a não ser estranho se eu dissesse que se tratava de um jovem negro, e seria ainda visto com normalidade o facto de estar mal vestido, com ar de toxicodependente e doente. Nada de novo também na atitude das pessoas que se encontravam à minha volta, o ar de desdém para com estas pessoas é normal, o ouvir alguém a dizer frases do tipo “deviam proibir este tipo de pessoas a entrar nestes sítios” também não é novo. O estranho foi que o jovem nada disse, não levantou o olhar do chão, não contestou nem reclamou. Tinha um ar de quem dava razão a todos os comentários e atitudes das pessoas à sua volta. Tinha um ar quebrado.
Devo confessar que não reclamei nem olhei com desdém mas também não o defendi, como acredito teria sido a minha obrigação, acho que fui talvez o pior de todos pois fiquei indiferente, foi-me a mais pura das indiferenças. Toda esta história, para mim já teria valido a pena pois obrigou-me a reflectir. No entanto não acabou, foi mais fundo em perguntas como a que o jovem fez e a resposta que teve.
Perguntou ele à empregada do café: ”dá-me um copo de água?” e eu que estava ao lado esperava já que a resposta fosse dada com maus modos e o referido copo de água entregue a contra gosto, quando fui surpreendido por um sorriso da jovem que lhe disse com a maior das simpatias: “Claro que sim”. Lembro-me que na altura pensei que a rapariga era simpática e muito atenciosa.
Estava o jovem a beber a água quando teve um ataque de tosse e todo ele se contorceu de dores. Nesta altura pensava eu, “coitado, pobre diabo...” A rapariga que lhe tinha dado o copo de água ao ver aquele cenário de miséria teve um gesto de compaixão e perguntou-lhe numa voz meiga mas que mal se ouvia, numa voz que fazia por passar despercebida “Queres um copo de leite?”.
O rapaz ergueu os olhos que diziam um obrigado do tamanho do mundo e em silencio disse que sim com a cabeça. Um acto de nobreza pensei eu na altura... e afinal era só um copo de leite... hoje, um dia depois de terem ocorrido estes factos, acho que não foi o gesto que me tocou, foi a forma como ele foi feito, no silencio, com a vontade de que não fosse percebido pelos outros que estavam ali à volta e tudo por respeito para com o rapaz, que estava sujeito e dependia da bondade humana. Bondade que aquela rapariga teve não só por lhe dar o copo de leite, não só por trata-lo como ser humano quando poucos mais o faziam mas bondade porque o fez em silencio, preservando a dignidade, a pouca dignidade do jovem.
No fim disto tudo ela sabia que ele tinha fome, ele sabia que não podia pagar, eu nada sabia e era espectador. Ela estendeu-lhe a mão e entregou-lhe um bolo, ele voltou a agradecer com o olhar e depois baixou de novo a cabeça como que se de repente se lembrasse da sua condição.
Ele baixou a cabeça e saiu do café, segurando entre as mãos um bolo, segurava-o com um amor no olhar, como que segura uma criança acabada de nascer. Era mais do que um bolo aquilo que ele segurava, era uma certeza, uma breve certeza de que afinal ainda havia alguém que se interessava por ele, havia alguém, um desconhecido, para quem ele ainda contava.
Ele segurava o bolo enquanto saia de cabeça baixa mas com um ar de quem percebeu que afinal ainda vale a pena.
Ante todo este quadro que aconteceu à minha volta senti-me pequeno e olhei com admiração para aquela rapariga que por detrás de um balcão de café tinha tido um gesto de nobreza enorme. Ainda pensei em dizer-lhe qualquer coisa mas depois calei-me, paguei a conta e sai. Tudo o que eu disse naquele momento não ia adiantar nada e daria sempre ar de quem adivinha o resultado depois do jogo ter sido jogado. Tudo o que eu disse naquele instante teria sido pobre face àquele brilhante discurso.
JAlvim
Não fora o facto de eu estar ao lado para a presenciar, para a acompanhar de perto e provavelmente teria passado despercebida. Não me passou despercebida e ainda bem porque me abriu os olhos e me fez ver que afinal vale a pena.
Estou farto de rodeios e como hoje não estou nos meus dias, cá vai a história de chofre, sem grandes rodeios.
Tinha eu acabado de pedir a minha bica ao balcão num café do Colombo quando ao meu lado apareceu um jovem. Até aqui nada de novo e de estranho... continuava a não ser estranho se eu dissesse que se tratava de um jovem negro, e seria ainda visto com normalidade o facto de estar mal vestido, com ar de toxicodependente e doente. Nada de novo também na atitude das pessoas que se encontravam à minha volta, o ar de desdém para com estas pessoas é normal, o ouvir alguém a dizer frases do tipo “deviam proibir este tipo de pessoas a entrar nestes sítios” também não é novo. O estranho foi que o jovem nada disse, não levantou o olhar do chão, não contestou nem reclamou. Tinha um ar de quem dava razão a todos os comentários e atitudes das pessoas à sua volta. Tinha um ar quebrado.
Devo confessar que não reclamei nem olhei com desdém mas também não o defendi, como acredito teria sido a minha obrigação, acho que fui talvez o pior de todos pois fiquei indiferente, foi-me a mais pura das indiferenças. Toda esta história, para mim já teria valido a pena pois obrigou-me a reflectir. No entanto não acabou, foi mais fundo em perguntas como a que o jovem fez e a resposta que teve.
Perguntou ele à empregada do café: ”dá-me um copo de água?” e eu que estava ao lado esperava já que a resposta fosse dada com maus modos e o referido copo de água entregue a contra gosto, quando fui surpreendido por um sorriso da jovem que lhe disse com a maior das simpatias: “Claro que sim”. Lembro-me que na altura pensei que a rapariga era simpática e muito atenciosa.
Estava o jovem a beber a água quando teve um ataque de tosse e todo ele se contorceu de dores. Nesta altura pensava eu, “coitado, pobre diabo...” A rapariga que lhe tinha dado o copo de água ao ver aquele cenário de miséria teve um gesto de compaixão e perguntou-lhe numa voz meiga mas que mal se ouvia, numa voz que fazia por passar despercebida “Queres um copo de leite?”.
O rapaz ergueu os olhos que diziam um obrigado do tamanho do mundo e em silencio disse que sim com a cabeça. Um acto de nobreza pensei eu na altura... e afinal era só um copo de leite... hoje, um dia depois de terem ocorrido estes factos, acho que não foi o gesto que me tocou, foi a forma como ele foi feito, no silencio, com a vontade de que não fosse percebido pelos outros que estavam ali à volta e tudo por respeito para com o rapaz, que estava sujeito e dependia da bondade humana. Bondade que aquela rapariga teve não só por lhe dar o copo de leite, não só por trata-lo como ser humano quando poucos mais o faziam mas bondade porque o fez em silencio, preservando a dignidade, a pouca dignidade do jovem.
No fim disto tudo ela sabia que ele tinha fome, ele sabia que não podia pagar, eu nada sabia e era espectador. Ela estendeu-lhe a mão e entregou-lhe um bolo, ele voltou a agradecer com o olhar e depois baixou de novo a cabeça como que se de repente se lembrasse da sua condição.
Ele baixou a cabeça e saiu do café, segurando entre as mãos um bolo, segurava-o com um amor no olhar, como que segura uma criança acabada de nascer. Era mais do que um bolo aquilo que ele segurava, era uma certeza, uma breve certeza de que afinal ainda havia alguém que se interessava por ele, havia alguém, um desconhecido, para quem ele ainda contava.
Ele segurava o bolo enquanto saia de cabeça baixa mas com um ar de quem percebeu que afinal ainda vale a pena.
Ante todo este quadro que aconteceu à minha volta senti-me pequeno e olhei com admiração para aquela rapariga que por detrás de um balcão de café tinha tido um gesto de nobreza enorme. Ainda pensei em dizer-lhe qualquer coisa mas depois calei-me, paguei a conta e sai. Tudo o que eu disse naquele momento não ia adiantar nada e daria sempre ar de quem adivinha o resultado depois do jogo ter sido jogado. Tudo o que eu disse naquele instante teria sido pobre face àquele brilhante discurso.
JAlvim
1 Comments:
Obrigado, Velhote.
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