segunda-feira, janeiro 10, 2011

Por quem os sinos dobram

DN2011-01-10 João César das Neves

O site WikiLeaks foi lançado no final de 2006, declarando nos seus princípios: "O nosso interesse principal é expor regimes opressivos na Ásia, no antigo bloco soviético, África subsariana e Médio Oriente, mas também esperamos ajudar pessoas de todas as regiões que pretendam revelar comportamentos não éticos dos seus governos e empresas." Só que rapidamente percebeu que teria influência e fama apenas se invertesse a orientação e se dedicasse a regimes ricos não opressivos, aliás, prejudicando o tal "interesse principal".

Foi ganhando impacto em problemas controversos, da cientologia aos bancos islandeses e à guerra no Afeganistão, mas a 28 de Novembro de 2010 subiu à condição de ídolo das massas com o duvidoso projecto de revelar 250 mil mensagens diplomáticas americanas. Este projecto, ainda em andamento, é muito diferente dos anteriores e da filosofia inspiradora. Não existe nenhum benefício ético ou político específico ou sequer um propósito definido. Como uma arma de destruição maciça, atinge indiscriminadamente os alvos mais diversos e inesperados. O portal não é o terror de Chávez, Ahmadinejad ou Putin, mas de Hillary Clinton, David Cameron e Santos Ferreira, do BCP.

Uma coisa é revelar fraudes secretas de dirigentes, outra muito diferente é divulgar segredos razoáveis que a lei protege. Isto é sabotagem e traição. Como se explica então uma adulação tão entusiástica, vasta e diversificada? A razão é a mesma que antes desviara o site do seu propósito declarado.

As pessoas que vivem em regimes realmente opressivos não precisam nem beneficiam da denúncia daquilo que todos sabem, todos suportam e ninguém resolve. O tirano teme mais a faca do traidor que a fúria das massas ou a denúncia dos jornalistas. Pelo contrário, é nos regimes livres e democráticos, onde as coisas em geral funcionam razoavelmente, que existem multidões de insatisfeitos ansiosos por denunciar violentamente malfeitorias menores.

O fenómeno WikiLeaks é um espelho das tendências suicidas da sociedade mediática. A liberdade cria sempre expectativas superiores às possibilidades. Por isso, apesar dos ganhos indiscutíveis, sobretudo face às alternativas, multiplicam-se os desiludidos, indignados, revoltados, que usam a própria liberdade para a destruir. Isto aconteceu no início do século passado na Rússia, Itália e Alemanha com resultados catastróficos para o mundo. Agora o fenómeno renova-se com meios diferentes.

Os inimigos da democracia têm, no WikiLeaks e seus clones, instrumentos muito mais eficazes que um partido neo-nazi ou até uma célula terrorista. Fazendo-o em nome da liberdade. As massas de jovens rebeldes e progressivos que hoje adulam Julian Assange ficariam lívidos se o vissem comparado a Lenine, Mussolini ou Hitler. Nem reparam na semelhança entre a sua própria euforia e a dos jovens rebeldes e progressivos que há 80 anos vitoriavam os ditadores. Mas o paralelo é evidente até nos pormenores, como o culto de personalidade e o racismo.

A obsessiva presença da foto de Assange, o jovem e louro australiano, em todas as páginas do portal retoma práticas nazis ou estalinistas. Por outro lado, o facto de ser jovem, louro e australiano é decisivo no processo. Como reagiria o mundo e a corte de admiradores se o site fosse dirigido por um velho russo ou norte-coreano? Como seria considerada esta maciça bisbilhotice oficial se o rosto público fosse um terrorista muçulmano ou um banqueiro zarolho de nariz torto? O sucesso exige um hacker com aspecto de actor de cinema. Cada geração, dizendo-se isenta de discriminações e chauvinismo, tem tantos preconceitos como as antigas. São é diferentes. Por isso os ataques à sociedade livre surgem sempre do lado oposto dos anteriores. Hitler era o inverso do Kaiser, Napoleão o simétrico de Luís XVI.

Esta é a origem do velho provérbio de John Donne, repetido na novela de Hemingway (1940) e na canção dos Mettalica (1985): "nunca mandes saber por quem os sinos dobram; eles dobram por ti"
(Devotions upon Emergent Occasions, 1624).

segunda-feira, janeiro 03, 2011

A sombra da falsidade

por JOÃO CÉSAR DAS NEVES
in DN 2011-01-03

Os últimos anos trouxeram um traço original à nossa realidade política. Pela primeira vez há muitas décadas o País vê-se a viver debaixo de um manto de suspeitas, enganos, falsidades.

A vida política sempre teve proverbiais problemas com a verdade, pior numa sociedade mediática. Mas se uma certa ilusão e encenação fazem parte do saudável confronto parlamentar, existem épocas de distorção inaceitável, mesmo em sociedades civilizadas. O caso clássico é a presidência de Richard Nixon, cujo estilo e esquemas marcaram um período conturbado da fogosa democracia americana. Hoje vive-se situação semelhante em Portugal.

Desde 1974 a democracia sofreu fases muito diferentes, algumas difíceis e incertas. Mas nunca se viveu um clima de desconfiança e embuste como actualmente. Se tal situação não pode ser atribuível a uma pessoa, é verdade que, como Nixon, cabe a José Sócrates o papel central de responsável, inspirador e maestro desse ambiente. Trata-se, não tanto de um esquema consciente e organizado, mas de uma segunda natureza instintiva e automática.

As provas, hoje esmagadoras, tiveram sintomas desde o princípio. Apesar da pose inicial de estadista reformador, Sócrates viu-se logo envolvido num espectacular ardil para fugir da solene promessa eleitoral de não aumentar impostos. A surpresa indignada perante o que todos sabiam, o nível do défice, e a comissão técnica justificativa da cambalhota foram criações magistrais no género.

Este foi apenas o primeiro episódio de longa novela de ficções e patranhas. As questões financeiras permaneceram tema favorito, até ao rosário de PEC de 2010. A descarada desorçamentação e contabilidade criativa para sustentar projectos favoritos, como energias renováveis, distribuição de computadores e outros devaneios, escondem pesadíssimos compromissos sobre o futuro. Sobretudo as parcerias público-privadas, em que se apostou como nenhum governo do mundo, representam uma bomba de relógio fiscal que ultrapassa toda a nossa multissecular história de desregramento.

Nem só de dinheiros viveu a aldrabice. Todos os campos da vida nacional estiveram, mais ou menos, debaixo da sombra da falsidade. Das graves acusações na sua vida pessoal às supostas reformas corajosas que não mudavam nada, foram cinco anos de encenações, enredos e miragens. Claro que se tomaram medidas importante e foram feitas mudanças estruturais. Mas até essas tinham de vir sempre envolvidas em pretensões exageradas e roupagens fantásticas.

Nas questões fracturantes, prioridade irresponsável deste executivo, foram realizados prodígios de prestidigitação. Afirmando-se sempre um político equilibrado, moderno e conciliador, Sócrates enveredou impudente- mente pelo partido mais extremista, palpavelmente feliz por conseguir tal ilusionismo diante do país embasbacado.

É muito curioso que, nas várias suspeitas que surgiram relativamente a aspectos da sua história pessoal e política, o senhor primeiro-ministro tenha adoptado sempre a posição oposta à canónica. Os políticos acusados de fraudes ou tropelias costumam afirmar-se ansiosos que a questão vá a tribunal para que a verdade vença. Sócrates, nunca abandonando uma posição de negação indignada, fez sempre tudo para evitar o esclarecimento jurídico.

Este comportamento na cúpula ressentiu-se em todos os níveis da vida nacional. Portugal habituou-se a ver publicamente as contínuas e sistemáticas práticas de sobrepor à realidade um filtro distorcido, empregar expedientes oportunistas de manipulação, negar a evidência mais patente. A verdade desaparece sempre debaixo dos fumos da conveniência. Agora a crise faz a impostura descer a canalhice.

É bom não exagerar o significado desta realidade. Embora indiscutivelmente grave e nocivo, este novo estilo político nada tem a ver com as misérias de há cem anos. Além disso o repúdio generalizado pelo consulado de Sócrates terá consequências futuras. Como Nixon, ele ficará na história como hiato triste e aviso solene. Felizmente José Sócrates não representa a política lusa.

naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
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